Anarquismo nos Bálcãs

Os Bálcãs despertaram meu interesse logo cedo. Talvez tenha sido a primeira guerra da qual tive notícia. Na metade dos anos 90, na época em que a guerra se desenrolou, eu tinha idade o suficiente para captar as mensagens que estampavam as capas dos jornais e busquei fazer algum sentido de todos aqueles corpos estirados. Lembro de minha mãe se esforçando para tentar me explicar o que eram os estupros em massa e como soldados eram capazes de tal barbárie. Estávamos de férias na praia, eu devia ter uns 8 anos e tudo isso teve um grande impacto em mim.

Anos mais tarde, conheci na internet duas pessoas que moravam na Sérvia e começamos a nos corresponder. Nossa amizade, ainda que virtual, foi forte o suficiente para que eu fizesse planos de viajar até lá, passando por outros países da região. A minha viagem para lá nunca vingou, e com o tempo perdemos contato, mas esses planos todos me deixaram familiarizados com a região.

Anarquismo nos Bálcãs

Recentemente tive a chance de participar de um debate com um anarquista vindo da Eslovênia que estava passando pelo Bra$il. Ele estava por aqui para o 3º Fórum Geral Anarquista, que rolou em Campinas em Junho e veio representando a Federação pelo Anarquismo Organizado da Eslovênia e Croácia. Depois do Fórum ele acabou viajando até Belo Horizonte para propor um debate sobre o anarquismo na região.

A Eslovênia é um pequeno país na península Balcânica com apenas 2 milhões de habitantes. Como outros países dos Bálcãs, tem vivido uma onda crescente de movimentações anarquistas nos últimos quinze anos, impulsionada pelos movimentos antiglobalização e, mais recentemente, pelos impactos da crise e da austeridade.

Até então, não existia uma forte presença anarquista na região, com exceção da Grécia e Bulgária. Na Eslovênia, por exemplo, apenas se tem notícia de expressões anarquistas na Segunda Guerra Mundial. Nessa época anarquistas se juntaram axs Partisans – de tendência Marxista-Leninista – na luta contra a ocupação nazista. Após o fim da guerra, esses indivíduos foram duramente perseguidos com a consolidação da República Socialista da Iugoslávia, e o anarquismo só viria a ter um respiro novamente como parte da contracultura punk nos anos 80¹.

No início dos anos 90, durante a Guerra Civil da Iugoslávia, anarquistas tornaram a se organizar para combater o nacionalismo, em protesto contra a guerra e para trabalhar no auxílio das pessoas atingidas pela guerra.

Anarquistas no novo milênio

As grandes mobilizações contra a globalização econômica fizeram com que anarquistas voltassem às ruas nos anos 2000. Desde então, têm tido um papel crucial nas lutas sociais e grande influência na contracultura da região. Em 2011, assim como acontecia em muitas outras cidades ao redor do mundo, uma ocupação na praça em frente a Bolsa de Valores de Liubliana protestou contra o capitalismo internacional e o sistema financeiro. A ocupação durou seis meses e serviu para expôr as entranhas do capitalismo e suas inerentes desigualdades à todas as pessoas dispostas a escutar.

No final de 2012 uma revolta contra a instalação massiva de radares de velocidade em Maribor, segunda maior cidade da Eslovênia, tomou grandes proporções e foi reprimida brutalmente pela polícia. Em solidariedade, manifestações radicais tomaram o país e reivindicaram a queda de todos os governantes. Esse levante teve forte presença de anarquistas de outros países dos Bálcãs assim como da própria Eslovênia.²

Dois anos mais tarde, um levante como esse também chegou à Bôsnia, levando milhares de pessoas às ruas e culminando com uma gigantesca fogueira de papéis expropriados dos prédios administrativos do governo. Diferentes etnias se uniram contra todo e qualquer governo. De um lado do rio a sede do partido cristão, do outro a sede do partido muçulmano, ambas incendiadas numa demonstração de que os conflitos étnicos e religiosos agora dão um lugar à uma revolta generalizada contra todo o poder.

Enquanto isso, em Liubliana, duas gigantescas ocupações fazem notar a presença libertária bem no coração da cidade. A ocupação conhecida como Metelkova, com mais de 20 anos de existência, é um enorme complexo de prédios que serviam de alojamento para o exército nacional da Iugoslávia antes de ficarem desocupados. No início, ativistas tentaram negociar com a prefeitura um projeto de ocupação cultural do espaço, mas não foram ouvidxs. Pouco depois a cidade iniciou um processo de demolição do local e como resposta o complexo foi ocupado. Hoje em dia a cidade tenta legalizar o local, se utiliza da burocracia para tentar amortecer a influência radical da ocupação já que reconhece que não é possível desalojá-la por meio da força.

Desde o inicio, a ocupação do espaço é muito heterogênea. Com espaço para a contracultura punk, techno e artística, ginásios para treinos de artes marciais, cooperativas e salas ocupadas por diversos coletivos anarquistas, incluindo a Federação pelo Anarquismo Organizado da Eslovênia;

A Fábrica Autônoma ROG é a outra ocupação que divide o centro com a Metelkova. Ocupada em 2006, costumava ser uma fábrica das bicicletas ROG antes de ficar abandonada. Hoje hospeda várias iniciativas como bares, galerias de arte, ateliês, um centro social para migrantes e refugiadxs, espaços para shows, oficina de bicicletas e duas pistas de skate, sendo uma delas a maior pista de skate coberta da península balcânica. Em 2016 a cidade tentou desalojar a ocupação, mas enfrentaram uma rápida mobilização que expulsou a polícia, e os operários e suas máquinas que estavam prontas para derrubar os prédios. Na correria, algumas máquinas ficaram para trás e viraram decoração do pátio depois de pintadas de pink.

Aprender e Criar

A forte presença anarquista na região me surpreendeu muito e fiquei com a sensação que muitos dos desafios e aprendizados do movimento de lá podem servir de inspiração para o que fazemos por aqui. As manifestações de julho de 2013 aqui no Bra$il, por exemplo, sofreram de falhas muito similares aos problemas que anarquistas da Eslovênia e Sérvia enfrentaram nos seus levantes de 2012 e 2014. A longa experiência de luta contra o nacionalismo nos Bálcãs, pode nos render alguma reflexão quanto às táticas que iremos usar para frear a ascensão da direita brasileira. E também a importância de construirmos espaços duradouros e heterogêneos de contracultura, que sirvam como afirmação e prática radical de nossos sonhos.

Notas:
¹ É senso comum na Eslovênia que o movimento punk foi um dos principais motores da derrubada do governo socialista de lá.
² Os levantes levaram à queda do prefeito de Maribor e do presidente da Eslovênia, mas também à cooptação das assembleias de democracia direta, que passaram a ser organizadas por ONGs a serviço do governo.
³ Relato e análise sobre as assembleias e o levante na Eslovênia, parte da série de Crítica Anarquista à Democracia ainda sem versão em português → https://crimethinc.com/2016/05/11/feature-gotovo-je-reflections-on-direct-democracy-in-slovenia
Ótimo texto sobre os levantes na Bôsnia, também parte da série de Crítica Anarquista à Democracia

Fonte: Coisa Preta https://coisapreta.noblogs.org/anarquismo-nos-balcas/