Faz cerca de um ano que o jornal The Guardian divulgou os seguintes números: existem na Europa 11 milhões de casas vazias e 4,1 milhões de pessoas sem abrigo. Lembro-me logo da ocupação de São Lázaro, em Lisboa, ou da Es.Co.La da Fontinha, no Porto, ao longo de 2012. Ambos os espaços tornados públicos por quem deles precisava, vividos durante algum tempo, para depois serem destruídos pelo Estado e pela polícia. A perversidade está à flor da pele: os Estados nada podem fazer quanto à crescente miséria humana, mas não deixarão que as pessoas sigam caminho sozinhas. Para cada pobreza, a respectiva fila de espera.
Mas uma boa notícia: em Toulouse, França, um edifício foi ocupado para alojar pessoas sem abrigo. Foi criado o Collectif pour la Requisition, l’Entraide et L’autogestion – C.R.E.A., que a partir de 2011 garantiu habitação a cerca de quarenta pessoas, entre elas sete famílias e cerca de quinze crianças. Uma outra parte do edifício foi usada para um Centro Social: ali se dinamizaram actividades e espaços abertos a todos, biblioteca, bar e sala de festas, salas de aulas, boxe, alfabetização, apoio escolar, apoio social e jurídico, cozinha ou costura.
Em 2012, Susana Costa e João Garrinhas, através do colectivo Outros Ângulos, passaram por lá e acompanharam este lugar durante um mês, trazendo um pequeno documentário – “C.R.E.A.” – para partilhar esta experiência com os que dali estão longe. Assim me chegou esta história: um grupo de pessoas dando vida a uma solução, pelas suas mãos. Face à miséria, a organização popular e a entreajuda. Quarenta pessoas fora das ruas e dentro de uma casa, formando uma grande família. Quarenta pessoas a decidir em conjunto. Situações de pobreza transformadas num projecto comum, onde nasce a segurança e o afecto, tão difíceis de encontrar a dormir ao frio.
Em Março desse ano, a Câmara Municipal de Toulouse abre um processo de expulsão. Alegando que não existem as devidas formalidades para a ocupação daquela propriedade, e que o local não tem condições de higiene para as crianças, decide atirar todos de novo para a rua. Alega ainda que pretende dinamizar naquele espaço o mesmo projecto, mas desta vez, «público». Municipalizado. Com horários e regras de funcionamento. Mas todas as respostas do Estado para as pessoas sem abrigo estão a diminuir, (para isso) não há dinheiro suficiente. É então um problema de propriedade ou de medo da autogestão?
O alojamento de quarenta pessoas custa à câmara 60.000 euros. Nós fizemo-lo com água e luz, mas quando as pessoas se organizam por elas mesmas, quando as pessoas se entreajudam entre si, o Estado recusa isso, prefere que dependamos do sistema, diz um dos envolvidos. O Estado não é parte da solução, antes parte do problema. Assume que não tem meios para ajudar quem precisa, mas irá dizer-nos que não o podemos fazer por nós mesmos. Defende como mais legítimo esmagar um tremendo movimento de solidariedade do que travar a corrupção da banca, a especulação imobiliária ou a exploração laboral.
Para as famílias, o caminho é resistir e ocupar outros edifícios, para poderem continuar juntos. Porque a alternativa é a rua – apesar do investimento «público» em trazer um helicóptero e 200 polícias de elite para concretizar o desalojo. Mas uma boa notícia: O C.R.E.A. continua a ocupar edifícios e a experimentar novas formas de organização, alternativas ao Estado. Ocupam actualmente um antigo restaurante, depois da última expulsão, em Novembro de 2014.
Jornal Mapa http://www.jornalmapa.pt/2015/06/01/c-r-e-a-abrigo-e-poder-popular-em-toulouse/