7 de janeiro 2020
Ataques a retomadas nas margens da Reserva de Dourados se intensificaram em 2019. Na semana passada, sete indígenas foram feridos em nova investida de seguranças privados e policiais.
Por Assessoria de Comunicação – Cimi
Durante 16 horas, com início às 23 horas de quinta-feira (2) e entrando na tarde de sexta-feira (3), cerca de 180 famílias Guarani e Kaiowá das retomadas Nhu Vera, Nhu Vera Aratikuty, Nhu Vera Guasu e Boquerón, limítrofes à Reserva Indígena de Dourados, no Mato Grosso do Sul, foram alvos de seguranças privados de propriedades incidentes sobre o território indígena e do Departamento de Operações de Fronteira (DOF). Sete indígenas terminaram feridos atingidos por tiros de bala de borracha e projéteis de arma de fogo. Entre eles, um menino de 12 anos que perdeu três dedos da mão esquerda ao manipular uma granada deixada para trás pela polícia.
Conforme apuração do portal Campo Grande News, a granada se trata de um explosivo não letal, que emite luz e som, capaz de desorientar temporariamente os sentidos. O jovem Guarani Kaiowá teve três dedos amputados e segue internado no Hospital da Vida. O artefato foi encontrado em uma estrada e levado à aldeia Bororó, no interior da Reserva Indígena de Dourados, limítrofe ao local das retomadas atacadas, onde foi manipulado com curiosidade por diversas crianças antes de explodir.
Quanto aos demais feridos, Modesto Fernandes Guarani Kaiowá, com um tiro no rosto, Paulo Gonçalves Rolim Guarani Kaiowá, ferido no tórax e na cabeça, e Gabriel Vasque, atingido na perna por um tiro de bala de borracha, foram encaminhados ao Hospital da Vida pelo Samu, por volta do meio-dia de sexta, mas não correm risco de morte. Modesto segue internado, teve o maxilar quebrado e, segundo familiares, pode perder a visão do olho esquerdo. Os demais indígenas tiveram ferimentos provocados por disparos de bala de borracha em partes variadas do corpo, mas não requisitaram atendimento médico.
“Todo dia eles nos provocam, atiram na gente, xingam. Eles estão ali não é só pra vigilância, mas pra tirar indígena da terra”
Um segurança também terminou ferido. Wagner André Carvalho foi atingido no tórax, passou por cirurgia, segue internado, mas se recupera. A reportagem fez contato com a empresa de segurança Mirage no final da tarde de sexta, mas conforme uma parente próxima ao proprietário, por enquanto ele não iria se manifestar.
O uso de empresas de segurança privadas em conflitos com indígenas no Mato Grosso do Sul não é uma novidade. Em 2018, como consequência de denúncia do Ministério Público Federal (MPF), a Justiça Federal mandou fechar a empresa de segurança Gaspem, além do bloqueio de bens e pagamento de multa por danos morais, pelo envolvimento com ataque a indígenas do Mato Grosso do Sul entre 2009 e 2011, culminando em assassinatos de lideranças.
Nesta segunda-feira (6), o governo federal enviou para Dourados, com o intuito de pacificar a região, o Secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, o ruralista Luiz Antônio Nabhan Garcia, que presidiu por mais de uma década a União Democrática Ruralista (UDR), acusada de organizar milícias armadas, no final da década de 1980, para prestar serviços de pistolagem a fazendeiros contra os sem-terras. O próprio secretário do governo Bolsonaro chegou a ser investigado pela contratação de pistoleiros nos anos 2000, mas nunca foi indiciado, conforme reportagem da Repórter Brasil.
Nabhan Garcia, com a companhia do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), participou de uma reunião com autoridades públicas estaduais. O ruralista declarou ao portal Campo Grande News que “as pessoas precisam entender que ninguém tem direito a invadir propriedades alheias. A presidência da Funai veio de Brasília e irá fazer visita aos índios”.
A tese de invasão como a razão da violência perpetrada pelos seguranças armados das propriedades é refutada pelos Guarani e Kaiowá. “Todo dia eles (seguranças) nos provocam, atiram na gente, xingam. Eles estão ali não é só pra vigilância, mas pra tirar indígena da terra. Tão aproveitando que tá todo mundo de festa de ano novo e atacando”, declara Laurentino Guarani Kaiowá, que vive em uma das retomadas atacadas.
“A polícia chegou na sequência atacando o povo. Seguranças devem ter chamado. Atiraram na gente já na aldeia atual, que não é retomada e está dentro da Reserva”
O ataque
Por volta das 23 horas de quinta, os seguranças privados, conforme três fontes indígenas diferentes ouvidas pela reportagem, iniciaram algo já habitual, registrado durante todo o ano de 2019 nas retomadas limítrofes à Reserva Indígena de Dourados. “Chegaram perto das retomadas e deram tiros. A gente se defende como pode, quando acontece, usando paus e pedras. Teve um índio que se machucou ainda na noite. Isso continuou até depois da meia-noite, mas ninguém mais dormiu. Quando ataque diminui, eles gritam, xingam e a gente fica vigilante”, conta Laurentino. Pela manhã a situação parecia estar mais tranquila.
Integrantes da Funai estavam no local, em reunião com os Guarani Kaiowá, tomando parte do que havia acontecido na noite anterior, quando tiros foram ouvidos e uma correria se iniciou. Era a sequência do ataque. Desta vez, a ofensiva contra os indígenas contou com o apoio do “caveirão”, um trator fortificado com chapas de ferro e fendas possibilitando aos ocupantes atirar contra os indígenas. A máquina de extermínio invadiu a retomada Nhu Vera e destruiu quatro barracos de lona.
“Quatro famílias viviam neles com crianças, idosos. Não se importaram se tinha gente dentro. Passaram por cima”, declara Laurentino. Os tiros partiram do “caveirão” e dos próprios seguranças.
Os tiros partiram do “caveirão” e dos próprios seguranças.
“A polícia chegou na sequência atacando o povo. Seguranças devem ter chamado. Fechamos estrada como forma de protesto, não queremos mais isso contra a gente. A terra é do nosso povo. Polícia não importa com isso, vê a gente só como invasor. Atiraram na gente já na aldeia Atual, que não é retomada e está dentro da Reserva”, conta Laurentino Guarani Kaiowá. O indígena afirma ainda que é comum tiros e ataques chegarem às aldeias da Reserva, não sendo uma situação restrita às retomadas. “Não sei se é [porque]que na correria uma parte vai pra aldeia, mas a polícia atirou contra a gente lá na aldeia”, explica. Apenas pela tarde de sexta a tensão diminuiu, arrefecendo o conflito migrado dos seguranças privados para a polícia.
Na Reserva vivem 18 mil indígenas Guarani e Kaiowá e Terena dividindo 3.475 hectares de área. Tal extensão vem há décadas se mostrando insuficiente para a reprodução física e cultural dos indígenas, sobretudo de acordo com o modo de vida dos Guarani e Kaiowá. Diante da atual situação, não restou alternativa aos Guarani e Kaiowá a não ser realizar retomadas em áreas limítrofes atrás de mais espaço em terras tradicionais, com ocupação tradicional pretérita, mas obliterada pelos esbulhos patrocinados pelo Estado, e hoje reivindicadas oficialmente e objetos de estudos demarcatórios. “O que nós esperamos é que os proprietários entrem na Justiça em busca dos direitos, não contratando segurança para nos atacar porque também temos direitos”, entende Laurentino Guarani Kaiowá.
O ano passado foi particularmente o de maior violência contra as retomadas realizadas às margens da Reserva de Dourados. Ataques vem escalando desde as eleições de 2018.
Histórico
A recente escalada nos ataques contra as retomadas realizadas às margens da Reserva Indígena de Dourados teve início em outubro de 2018. O mais intenso dos ataques daquele mês ocorreu na noite do dia 28 de outubro, data em que foi confirmada a eleição de Jair Bolsonaro a presidente da República. No segundo de quatro ataques registrados em menos de um mês, 15 Guarani e Kaiowá foram feridos por disparos feitos com balas de borracha e de gude.
O ano passado foi particularmente o de maior violência contra as retomadas da região. Os ataques foram intermitentes, tendo momentos de maior gravidade e letalidade. Foram ao menos oito ataques com vítimas nas ofensivas dos seguranças privados e um caso em que a polícia foi acionada, mas acabou se voltando também contra os Guarani Kaiowá. À Procuradoria-Geral da República (PGR), os indígenas denunciaram a morte de Romildo Martins Ramires, de 14 anos, atingido por 18 tiros de balas de borracha, sendo em seguida atirado vivo a uma fogueira pelos seguranças, conforme a denúncia. Romildo ficou internado no Hospital da Vida, em Dourados, mas não resistiu aos ferimentos e morreu no dia 29 de julho.
Pouco após o episódio descrito em denúncia à PGR, os indígenas J.E, de 15 anos, e A.M, de 14 anos, perderam parcialmente a visão em decorrência de tiros de bala de borracha. No dia 1º de agosto, Mirna da Silva foi perseguida por pistoleiros. Vários tiros de bala de borracha foram efetuados contra a indígena, que precisou ser levada ao hospital. Na sequência, o trator modificado utilizado para destruir os barracos das retomadas machucou uma senhora Guarani Kaiowá de 75 anos. Ela teve as duas pernas prensadas e quebradas.
Jé em 12 de outubro, a retomada Avae’te foi atacada pelos seguranças privados, baleando um jovem Guarani Kaiowá na perna esquerda. Ele tentava fugir, mas o ferimento o impediu. Capturado, conforme os relatos de testemunhas, foi torturado. A polícia foi acionada, mas ao invés de conter a situação e apurar o que ocorreu se voltou contra os indígenas. Um mês depois a retomada voltou a ser atacada com disparos de arma de fogo. Não houve feridos, mas os tiros foram direcionados contra os barracos e casas dos indígenas. Dias depois, em 5 de novembro, as retomadas Nhu Vera Guasu e Aratikuty foram alvo de mais um ataque. Desta vez houve feridos a tiros de bala de borracha, casas incendiadas e derrubadas, além de um poço artesiano ter sido inutilizado.