O que têm de diferente a Es.Co.La da Fontinha, no Porto, ou a casa de S. Lázaro, em Lisboa, dos restantes movimentos de ocupação? Porque é que, de uma casa para a outra, estes movimentos ganham poder no espaço público mediatizado, levando a discussão para além da questão da propriedade privada? As explicações podem tecer-se com diversos motivos, mas há um que parece não levantar dúvidas: perante um estado social falido que não consegue garantir nem os direitos cidadãos nem a preservação do seu próprio património, há que pôr mãos à obra e criar alternativas, negando o papel de «vítima da crise» e provocando autonomamente novas possibilidades de desenvolvimento pessoal, social, cultural e económico.
É fácil aceitar o argumento de que a propriedade privada deve ser respeitada. Também é fácil aceitar que «propriedade privada» não pode querer dizer o mesmo quando a propriedade privada é pública, como no caso de um edifício municipal. Os impostos representam uma receita pública demasiado alta para não nos interessar o destino das nossas linhas ferroviárias, das nossas barragens, das nossas escolas e do nosso património. Deve interessar-nos, portanto, discutir o destino das centenas de alojamentos municipais devolutos que apodrecem no centro das cidades e, pelos vistos, isso interessa também a quem ocupou e resiste na Fontinha e em S. Lázaro.
Os recentes movimentos de ocupação de propriedade privada municipal conseguiram fazer do seu quintal um trampolim para todos os quintais dos centros urbanos, gerando discussões ao nível do planeamento urbano e territorial, das políticas de habitação, das políticas sociais e da gestão pública do património. Em Lisboa, o colectivo que ocupou o n.º 94 da rua de S. Lázaro, no Martim Moniz, na sua primeira Carta Aberta dirigida à vereadora da Acção Social Helena Roseta, afirmou-se como um grupo de habitantes da cidade de Lisboa que assistem, pensam e criticam há vários anos o modelo de revalorização a que têm sido sujeitos os bairros da cidade. A ocupação torna-se um meio privilegiado para accionar a revisão de leis obsoletas, que desertificam os centros urbanos, adubam as periferias, favorecem a especulação imobiliária, negam o direito à habitação e sustentam, ainda assim, o direito a manter vazios os seus edifícios. Helena Roseta, por seu lado, não tem estado à altura de um diálogo sério e fundamentado. Perante um colectivo que exige um novo paradigma, afirmou: não me agradam as desocupações, mas todos os dias as temos: de famílias carenciadas que querem casas. Seria um precedente enorme. Não posso tratar este grupo de forma diferente do que trato essas famílias pobres. A vereadora da Acção Social prefere admitir que todos os dias expulsa dos seus edifícios municipais vazios famílias pobres, a discutir as políticas que levam a essa inexplicável acção social kafkiana.
Resta saber que o colectivo de S. Lázaro se nega a discutir uma política do bate-pé e da barricada. A uma reunião convocada pela vereadora, compareceram representados por especialistas na área social e urbana. Perante a afirmação, da mesma vereadora, de que o edifício estava em risco de derrocada, o colectivo recorreu a especialistas para produzir o seu próprio relatório de peritagem, que comprovou a segurança do n.º 94. Quando um despacho proferido pela vereadora alterou o prazo de desocupação voluntária previsto no n.º 2 do artigo 4.º do Regulamento das Desocupações de Habitações Municipais (RDHM), reduzindo-o de 90 para 10 dias úteis nas situações de ocupações não autorizadas de habitações municipais, o colectivo avançou com uma providência cautelar no Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa, denunciando a aprovação ilegal de um despacho fora da Assembleia Municipal.
Se os Estado continuar a olhar estes movimentos como insignificantes actos de rebeldia, desobediência ou provocação, vão atrasar-se na discussão. E quando chegarem à falência, cheios de propriedade que não podem gerir, os cidadãos já terão encontrado, afirmado e conquistado as suas próprias soluções.
Publicado em http://pt.indymedia.org/