O termo “gentrificação” é usado para explicar um importante mecanismo de manutenção de espaços ociosos, sobretudo nas regiões centrais das grandes cidades. São transformações que tem como fim recuperar o valor de áreas específicas, almejando enobrecê-las. Em resposta a esse jogo de interesses, o movimento squatter desafia as políticas excludentes ligadas à especulação imobiliária. Seu método são as ocupações.
A prática não é recente. O movimentonasceu na Europa dos anos 1960, propondo, como alternativa à falta de moradia, a ocupação de casas, apartamentos e prédios desocupados ou abandonados em razão da especulação. A partir da década de 1980, essa modalidade de luta urbana estreitou vínculos com a cultura punk e o anarquismo. Essa aliança político-cultural fez germinar diversos centros de atividades sociais.
Tipicamente urbanos, os squatters ou okupas (como são chamados na Espanha e na América Latina) atraem uma diversidade de adeptos: desempregados, estudantes, punks, anarquistas, ecologistas, feministas, artistas… Ao grafar okupaçãocom a letra k, o objetivo é diferenciar-se de outras categorias de ocupações urbanas, focadas unicamente no direito à moradia, a exemplo do Brasil de coletivos que reivindicam reformas urbanas, como a União dos Movimentos de Moradia, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto e a Frente de Luta pela Moradia. No caso das okupações, a questão do direito à moradia também está em voga, mas acompanhada de motivações políticas que almejam a criação de espaços culturais, como ateneus libertários, bibliotecas e oficinas.
Em 1987, a banda punk paulista Cólera, em turnê pela Europa, conheceu de perto a atmosfera squatter ao realizar a maioria dos shows em squats. O encarte de seu LP European Tour`87 trouxe relatos de cada show: “o local era uma faculdade abandonada, um enorme edifício ocupado pelos punks alemães”. Isto possibilitou, no mínimo, um exercício de reflexão de alguns punks brasileiros sobre a existência de tal prática urbana e seus possíveis vínculos com a cultura punk.
O squat ouokupa, propriedade ocupada ilegalmente,visa revitalizar o espaço por meio do comprometimento coletivo: providenciar água, luz (por vezes de forma clandestina), limpeza e reforma em regime de mutirão. A administração do lugar se dá através do compartilhamento de responsabilidades.Também há solidariedade entre as okupaçõesexistentes no Brasil e uma rede de intercâmbio internacional.
No Brasil, a prática deu seus primeiros passos no final da década de 1980, mas a primeira experiência a ganhar destaque na mídia ocorreu em julho de 1993: em Florianópolis, um prédio de 15 cômodos da prefeitura foi ocupado por cerca de dez anarco-punks. “Anarco-punks invadem prédio buscando um espaço alternativo”, estampou em manchete o jornal local O Estado, que assim descreveu o grupo: “Eles são anarquistas, mas frisam que não são desordeiros. Prova disso é a tentativa de recuperar o local abandonado desde o incêndio que aconteceu no ano passado. Sonham com um mundo onde não existam governantes, apenas respeito entre as pessoas”.
O movimento anarco-punk originou-se das clivagens do punk, surgido nos anos 1970 nos subúrbios tanto dos Estados Unidos como da Inglaterra, em grupos de jovens que tinham suas perspectivas de vida frustradas diante de um cenário de crise econômica refletida em crescente desemprego. Com atitudes provocadoras e desordeiras, os punks revelaram ao mundo uma nova expressão estética e comportamental. Ainda no final da década, o movimento ecoava no Brasil por meio da imprensa e da venda de discos importados.
Nos anos 1980, com a abertura política, alguns punks travaram contato com militantes anarquistas e passaram a participar de discussões promovidas por coletivos libertários de São Paulo. Assumiam uma identidade de luta comprometida com as questões sociais e marcada por reflexões oriundas do anarquismo. Na década de 1990, o Movimento Anarco-Punk (MAP) já agregava uma rede de núcleos em diversas cidades do Brasil.
Numa época de descaracterização do ideal anarquista, comumente tachado como desordem pelos meios de comunicação, os anarco-punks faziam questão de afirmar a força e a criatividade do pensamento libertário como intervenção política. Para o grupo que ocupou o prédio público de Florianópolis, a criação de um espaço alternativo era vista como um exercício de autogestão, apoio mútuo e afronta aos valores do mundo capitalista – entre os quais a propriedade privada e a massificação cultural. Aquele squat destinava-se a eventos e trabalhos que se colocavam na contramão do sistema social excludente.
Em julho de 1995, outra okupaçãolevada a cabo por anarco-punks ganhou alento na periferia de Curitiba. Conhecida como Squat Kaäza, durou mais de uma década graças a atividades de rua, como a venda de fanzines (jornais artesanais) e adesivos (feitos em serigrafia própria) para gerar renda. No fanzine Inf. Punk, os membros da Kaäza informavam: “decidimos trocar os vidros das janelas, (…) começamos a vender o fanzine ‘Sentidos do Ser’ nº 5 que teve sua renda convertida aos novos vidros. Todo o lado exterior da casa estava exposto a toda movimentação que acontecia na quadra por estar totalmente desprotegido, porque o muro que existia estava todo destruído. Organizamos então um pedágio em prol da construção do muro”.
Além dessas atividades que lhes permitiam viver à margem do trabalho formal, os squatters também encontraram no desperdício da sociedade de consumo uma rica fonte de suprimentos. Do excedente tornado lixo e abandonado pelas calçadas garimpam-se materiais que serão usados na restauração de construções degradadas ou como mobiliário nos espaços ocupados, onde a criatividade torna-se o diferencial nessa arte de reciclar.
Ainda em Curitiba, alguns punks anarquistas – que haviam passado pela experiência da Kaäza –ocuparam, em 1997, outra casa abandonada próxima ao Centro, com dois andares e 17 cômodos, constituindo o Squat Payoll. No ano seguinte, na busca por atuar como uma célula cultural alternativa, eles organizaram sua primeira Jornada Cultural, com palestras sobre os movimentos punk e squatter, exposição de vídeos, recitais de poesias, teatro e show beneficente para o squat, com apresentação de bandas punks.
Mas o Squat Payoll não sobreviveria para ver o novo milênio. Ações policiais para apreender materiais – incluindo registros documentais que comprovariam a melhoria do espaço – foram seguidas da prisão de vários okupas. A situação se complicou em 1999 em função de uma ação movida pelo proprietário do imóvel contra os ocupantes do espaço, que responderiam por invasão de domicílio. Mesmo contando com a assistência jurídica de um advogado ligado a movimentos sociais, os squatters já previam o desfecho do processo: uma ação de despejo.
Na virada para o século XXI, o movimento squatter ganhou fôlego no Brasil, com crescentes ocupações. Entre elas, o Squat Teimosia, criado em Porto Alegre em 2004. Em uma casa de 30 cômodos no Bairro Bom Fim, área nobre no centro da cidade, o Teimosia abrigava biblioteca e videoteca, patrocinava oficinas de confecção de velas e trabalhos com graffiti e percussão. Acabou por enfrentar os problemas da maioria das okupações: ataques neonazistas e investidas policiais. Logo no início desta ocupação, alguns skinheads tentaram intimidar os ocupas, depreciando o espaço, rasgando e surrupiando faixas com mensagens de protesto do squat. Também havia confrontos envolvendo punks e skinheads nas imediações da ocupação.
Quanto à polícia, uma de suas ações culminou no confisco de livros e vídeos e na detenção de 25 pessoas. Em 2005 foi cumprida uma ação de reintegração de posse. Vida que segue ou, como eles dizem, “Um desalojo, outra ocupação”: os anseios de manutenção de um espaço cultural alternativo resultaram no Squat N4, posteriormente chamado de Bosque Ibirapijuca, ainda hoje existente.
Dos 43 mais importantes squats realizados no país até 2012 – a maioria na região Sul e em São Paulo – quase todos foram extintos por ações de despejo. Entre as okupaçõesque sobrevivem à especulação imobiliária, destacam-se o J13 e o Alvorada Libertária, no Paraná; o Korr-Cell e o Guamirim de Maio, em Santa Catarina; o BosqueIbirapijuca e o 171, no Rio Grande do Sul.
Por meio da desobediência civil, esses punks-anarquistas escrevem uma história paralela de alternativas criativas para o problema habitacional.
Cleber Rudy é autor da dissertação “Os Silêncios da Escrita: a historiografia em Santa Catarina e as experiências libertárias (1960-2000)”, (Udesc, 2009).
Saiba mais
BEY, Hakim. TAZ: Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad, 2001.
SCHECTER, Stephen. Política da Libertação Urbana. Lisboa: Sementeira, 1978.
TAVARES, Carlos A.P. O que são Comunidades Alternativas. São Paulo: Nova Cultural/ Brasiliense, 1985.
Internet:
Filme:
O que fazer em caso de incêndio?(Greogor Schnitzler, 2003).
Na Holanda, os krakers
No fervor da contracultura dos anos de 1960, casas vazias em Amsterdã, capital da Holanda, apareciam com suas portas e fachadas pintadas de branco. Era um sinal de que estavam ocupadas. Dessas primeiras reações à especulação imobiliária de grandes áreas urbanas, nasceria um movimento de grande notoriedade internacional: Kraker (do inglês crack, quebrar). No auge de suas ações, na década de 1980, o grupo chegou a realizar mais de 15 mil ocupações, e deu forma a um importante arsenal de propaganda, constituído pela revista Bluf!, rádios clandestinas, livrarias, oficinas gráficas, assessoria jurídica, bares e cafés. Para se prevenir das violentas ações policiais no cumprimento de ações de despejo, os krakers criaram recursos de resistência que iam de um elaborado sistema de comunicação (rede de ajuda), que mobilizava dezenas de militantes, até o uso de barricadas, pedras e coquetéis molotov. Eles foram um dos embriões do movimento squatter de verve anarquista. Recentemente, mudanças na legislação da Holanda criaram, em 2010, a lei “antikraak”, criminalizando as ações de ocupação e colocando em xeque inúmeros espaços mantidos pelos krakers, situação que tem gerado fortes protestos.
[Fonte: revistadehistoria.com.br]